domingo, 24 de janeiro de 2010

Perdendo a inocência

Ao longo da minha vida, sempre fui aquele cara certinho, que estudava muito, fazia tudo em casa, procurava agir sempre de maneira correta, nunca me envolvi com drogas, raramente bebia, sempre respeitei as mulheres, etc.

Quando resolvi cursar a faculdade, estudei feito doido por dois anos para entrar em uma grande universidade. Não consegui por pouco as duas vezes, e para não perder mais tempo, resolvi entrar numa paga. Ali, continuei estudando bastante, e praticando, sempre que tinha tempo. Comprei livros, fiz estágios. Meu pai gastou R$30.000,00 comigo ao longo da minha carreira estudantil (dado que surgiu numa grande briga de família, mas eu vou começar a usar como brincadeira).

Aí, eu, no auge do meu idealismo, passei num concurso público, para ser professor de arte do Estado. Tinha mil planos em mente. Queria mudar a vida de muita gente. Em pouco mais de três meses, meus sonhos tinham ido pelo ralo, e hoje, um ano e meio depois, estou doido para mudar de ares.

Tanto estudo, tanto investimento, e você encontra uma realidade completamente contrária. Temos um governo, que guia o nosso estado, há quase vinte anos, que “revolucionou” a educação, e instituiu a “empurração continuada”, atrocidade que defende até hoje. Arrochou os salários, deixou as escolas às moscas. Como resultado, a qualidade de ensino caiu cada vez mais, e com o passar do tempo, este mesmo governo, ao longo de seus representantes, foi colocando a culpa nos professores, como se estes não tivessem qualidade para exercerem a profissão. Pois é, 230 mil profissionais, que passaram em concursos bastante concorridos, que não sabem trabalhar.

Depois, a opinião pública, completamente despolitizada, que acredita em tudo que este governo joga. Acredita que somos maus profissionais. Acredita que estamos fazendo de tudo para não trabalharmos. E faz com que seus filhos pensem assim. E seus filhos, entram na escola prontos para explodirem o prédio. Destroem carteiras, luminárias. Gritam em sala de aula, não param de falar um minuto, dão de ombros quando você tenta explicar...

Aí, você, professor. Você prepara aulas, estuda, estuda, estuda, e quando entra em sala, ninguém dá ouvidos para o que você fala. Para cobrir a voz de quarenta falando ao mesmo tempo, você tem que se esgoelar, e com isso, acabar com suas cordas vocais. Mas, mesmo assim, não dá. Quarenta contra um só com uma caixa de som. Então você, enfurecido por não conseguir fazer o seu trabalho, começa a dar bronca nos alunos, e os manda calarem a boca. Então, ele gentilmente te manda receber no seu orifício anal, ou manda que alguém te use sexualmente, ou mostra que sua mãe na verdade é uma mulher da vida.

Provavelmente, você irá esmorecer com isso, pelo choque do momento. Mas, tem uns que são teimosos, e querem fazer o trabalho direito de qualquer jeito. Então batem boca, mandam para a direção, que não pode fazer muita coisa a não ser uma suspensãozinha, pra o traste voltar depois de uns três dias. Novamente, você vai bater boca com o camarada, mas desta vez, ele, irritado por ser contrariado, vai te dar um soco na cara. Ou, uma cadeirada. Ou vai ameaçar te matar na rua, riscar o seu carro, te seguir, chamar uma turma pra te pegar. Se você der sorte, ele vai ser expulso por isso. Mas vai levar seus sistema nervoso junto. Dali pra frente, você ficará doente com facilidade.

Mas não se preocupe, você vai continuar trabalhando, pois este ótimo governo te permite faltar pra ir ao médico apenas seis vezes ao ano. Não, não estamos na Inglaterra no século XVIII, nem na China ditatorial, nem no Iraque. Estamos em São Paulo, e não temos direito de ficarmos doentes.

No fim, só temos que trabalhar, não importa o quanto estejamos. Não teremos qualquer material para realizarmos uma aula de qualidade, nem um ambiente propício para darmos uma aula de qualidade. Teremos que lidar com pessoas que têm uma quantidade tão grandes de problemas, e uma perspectiva de vida tão reduzida, que fica quase impossível mostrar que ainda há esperança, pois quando seu pai é traficante, sua mãe prostituta, e os dois ainda deram uma grande sorte de estarem vivos, e fora da cadeia, creio que a vida não deva ser lá muito boa...

Ainda recebemos, de vez em quando, um material dizendo o que temos de passar para os alunos. Em geral, o material é simplista, e mostra um conteúdo longe da realidade. Os alunos fumam maconha ao redor da escola, enquanto a polícia está longe. Se falarmos alguma coisa, seremos ameaçados, assim como nossas famílias. Os pais, quando não estão no caminho errado, simplesmente não conseguem criar os filhos, e sofrem tanto, que não conseguem passar qualquer perspectiva para seus filhos.

E no fim, você fica tão desanimado com a sua impotência perante o sistema, que perde o tesão de trabalhar, e faz o serviço de qualquer jeito, ainda ouvindo que você tem culpa, que se o aluno não aprende a culpa é só sua, e que você não é um bom profissional. Até filmes mostrando professores que conseguiram “superar” o problema, abrindo mão do casamento, da família, e arrumando mais empregos para custearem materiais para os alunos nós temos que agüentar.

E cada dia mais, eu penso que ainda sou muito novo, e que poderia fazer qualquer outra coisa, onde me sentisse muito mais realizado. Mesmo sabendo o quanto eu amo arte (minha disciplina), o quanto amo falar sobre isso, e o quanto amo ensinar sobre arte, acho que tenho mais frustração em me sentir um inútil, do que propriamente o amor que tenho em lecionar. Para qualquer homem, a sensação de impotência é a pior que pode existir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário