domingo, 23 de junho de 2019

SÉRGIO MORO E A DESMORALIZAÇÃO JUDICIAL


Quando Lula foi conduzido coercitivamente para prestar depoimento sobre um suposto triplex usado como propina, estava mais do que claro pra qualquer pessoa com mínimos conhecimentos jurídicos que estavamos diante de um show midiático cujo objetivo era uma satisfação política, que ainda não tínhamos exatamente noção da dimensão.
Condução coercitiva é algo bem mais sério e extremo, usado em casos de recusa a depor, e geralmente em juízo, depois de tentativas frustradas, com requerimento de uma das partes integrantes do processo, para que as provas façam sentido. Não é uma arma inicial sob alegação de possível recusa ou de frustração processual. Isso não existe.
Dali em diante, tivemos um show de horrores impensável, com uma condução baseada em “convicção” do juiz, diante de fatos. O que basicamente é o mesmo que dizer que não há provas, mas acredita-se na culpa do réu.
A ação de Sérgio Moro diante do caso Lula especificamente foi a pá de cal num sistema jurídico já destroçado, com decisões altamente suspeitas, sempre favorecendo determinados grupos e incrivelmente favoráveis a crimes. Mas Moro extrapolou os limites aceitáveis de qualquer ação judicial. Tornou-se um show man, que representou um grupo específico, ganhando fama e poder, elevado ao status de heroi nacional.
A função do juiz é julgar a ação, baseado em provas cabais. E no caso do direito penal, busca-se a verdade real. A Constituição já deixa claro que a dúvida é sempre pró-réu, sendo que ele será inocente até que se prove o contrário. Assim, deve ser provado da forma peremptória que o réu cometeu o crime. O juiz deve ser imparcial, observando as provas de forma isenta, ouvindo da mesma forma a defesa e a acusação, sem tomar partido, sem aconselhar, sem ter qualquer tipo de relação emocional, ideológica ou profissional com qualquer das partes.
No processo penal, a acusação é privativa do Ministério Público. Só ele pode acusar, exceto nos casos de injúria. A parte só pode agir em caso de omissão do Ministério Público. É um órgão independente e isento do judiciário. Ele participa da investigação e da subsunção dos fatos às provas. E o MP pode entender que o réu não cometeu o crime diante das provas, pode entender que sequer houve crime e pedir a absolviçao do réu ou mesmo o arquivamento do processo.
Dito isso, que são preceitos muito básicos do direito, e qualquer aluno medíocre em começo de carreira tem que saber de cor, os fatos que ocorreram no julgamento de Lula deixam mais do que claro que a condução processual foi completamente viciada. Desde a condução coercitiva, como foi citado, passando por áudios vazados de forma ilegal envolvendo a então presidente da república, cuja competência é exclusiva do STF, condenação em tempo recorde, impedindo a candidatura de Lula à presidência, ameaça de greve de fome caso o STF concedesse o HC ao condenado (o que, no caso do MP, é algo gravíssimo), retorno do juiz de férias, para atropelar uma decisão de plantão, que só poderia ser analisada pelo colegiado, fazendo todo o possível para impedir a soltura do réu, que já estava em grau de recurso, e não mais deveria ser julgado pelo juiz de primeiro grau.
A quatro dias da eleição presidencial em seu primeiro turno, o juiz soltou um áudio, gravado em depoimento, seis meses antes, onde havia denúncia que o PT teria corrompido o sistema para se perpetuar no poder. Coincidentemente, ocorria uma subida meteórica do candidato Fernando Haddad, do PT nas pesquisas. Após o áudio, Bolsonaro dispara, e quase ganha no segundo turno, o que acabou ocorrendo no segundo. Poucas semanas depois da vitória, Moro aceita o convite do vencedor, diretamente beneficiado pelo áudio, para ser ministro da justiça, com status de superministro. Meses depois, o presidente da com a língua nos dentes e revela que já há a promessa de Moro ser o próximo indicado ao STF.
Eu diria que pra não ver que os fatos são descaradamente tendenciosos e com objetivos excusos, a pessoa tem que ser muito, mais muito “torcedora” de um dos lados, nesse caso, anti-PT, e fazendo-se de cega para que o partido que ela não gosta não esteja no poder, a qualquer custo. Trazer Moro como heroi, diante dos fatos, só pode significar uma absurda ignorância com o sistema judiciário brasileiro, desconhecimento completo das nossas leis, ou uma total falta de caráter, onde o interesse privado sobrepõe-se, a todo custo, ao direito da maioria escolher como seguir o caminho.
Porém, surgiram os vazamentos do Intercept. Neles, Moro deixa claro que estava comandando diretamente a acusação, interferindo, quase como chefe, no trabalho do Ministério Público, com mudança de ordem de depoimentos, estilos de acusação, formas de agir, mudança de procuradora, antecipação de sentença, entre outras. E o pseudo-juiz é tão fraco ou sente-se tão intocável, que realmente admitiu como verdadeiras as conversas, para depois dizer que não ocorreu nada de mais.
Pessoas com reais interesses em fatos, que ouviram juristas renomados, sabem que o que ocorreu é gravíssimo. O ato é corrupção pura. Foi ferida diretamente a constituição federal, o código de processo penal, o código de ética da magistratura, e leis referentes ao sistema eleitoral. O processo está inteiramente apodrecido e inutilizado.
O histórico do juiz está repleto de casos anulados por usurpação das funções do MP, abuso de poder e erros processuais. O Banestado foi assim, permitindo que muitos réus fossem inocentados. O que ocorre agora é que existe um risco imenso de toda a operação Lava Jato ser anulada, e pessoas como Eduardo Cunha, Palloci e Vaccari serem soltos e ainda indenizados pelo Estado. Lula, nesse caso, seria o menor dos problemas.
O andamento regular do processo é mais importante que as provas. Respeitar o direito à defesa, a imparcialidade e o tempo razoável são ações imprescindíveis para que todo um trabalho não seja aniquilado. Moro certamente sabia disso. Mas o status de heroi o permitiu agir da forma que bem quisesse.
Sinceramente, o Intercept é apenas o ato de esfregar na cara. Os fatos estavam aí o tempo todo. Agora só sabemos que Sérgio Moro é um sujeito altamente corrupto e desonesto, como todos os que condenou.
Não acredito particularmente que Lula seja inocente. Creio que numa investigação séria e num processo correto fosse bastante possível provar os fatos alegados. Ou acabar de vez com qualquer dúvida sobre sua inocência. Mas agora o que temos é uma clara mudança na opinião pública, com muitas pessoas se voltando contra Moro, o que é ótimo, pois sabemos que herois não existem (aprendam essa maldita lição de uma vez por todas). E um esquema absurdo de corrupção que, se o judiciário não estiver atrelado a esse mesmo esquema, será tornado impune, pelo desejo sem limites de um juiz se tornar uma estrela.
E mais uma vez devemos pedir desculpas pela vergonha que nosso sistema judiciário nos faz passar.

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